À La Recherche du Temps Perdu

De tanto ter sido já repetido, nem vale a pena insistir no facto de o verdadeiro (e único) protagonista de "À Procura do Tempo Perdido", de Marcel Proust, ser o Tempo e a sua recuperação pela Arte, mais ainda do que pela Memória; ou então, sim, pela Memória, mas uma vez que ela própria seja transfigurada pela Arte.

Por outro lado, é sabido também que, embora desde sempre (e com indiscutível razão) se tenha utilizado, para a descrição ou definição da obra, a metáfora da Sinfonia, ele próprio, Proust, ao referir-se-lhe, utilizou a metáfora da Catedral, e justificou até essa utilização. E a verdade, afinal, é que ambas as metáforas são legítimas.

A Recherche emprega uma tão vasta concertação de instrumentos, desenvolve-se em "tempos" tão diferenciados e afinal unificados e constitui um tal manancial de recursos tipicamente musicais (como suspensões, recorrência de temas, gradações de tonalidades) que, mesmo sem falar da sua dimensão majestosa e, mais ainda, na insistência com que a arte da Música nela é citada e meditada, com facilidade, e até irresistivelmente, nos ocorre a imagem da Sinfonia.

Mas, por outro lado, não menos que as citações musicais e pictóricas, ou quase tanto como as literárias, são constantes as referências à Arquitectura, e particularmente à arquitectura religiosa, às igrejas e catedrais. Desde a igreja de Combray da infância do Narrador à catedral "persa" de Balbec, passando por inúmeras pequenas e grandes igrejas e outros edifícios (como a casa do tio Adolphe, por exemplo), todos sempre descritos e interpretados segundo os critérios próprios da Arquitectura, a obra arquitectónica funciona na economia da Recherche como pólo aglutinador de memórias, de desejos, de sonhos. Por exemplo, o Narrador vai a Balbec, que tão central virá a ser na trama romanesca da obra, apenas porque ouviu falar na sua "igreja persa" e sonha com a fruição dessa peça de arquitectura. Mas Proust, além disso, em múltiplas ocasiões, refere a vivência, no interior e no exterior, do espaço arquitectónico propriamente dito (e não apenas, embora também, da sua crosta decorativa) como algo de pelo menos tão essencial à vida espiritual do Narrador e de outros personagens (nomeadamente o diletante Swann, o pintor Elstir e a intuitiva Albertine) como as outras artes já citadas.

Ora, pensando bem, subindo agora um degrau e passando do particular para o geral, é fácil impor a metáfora da Catedral na compreensão global da Recherche, que facilmente se apercebe como constituída por sucessivas "pedras" que funcionam com missões específicas mais ou menos essenciais — chão, paredes, tectos, vigas de sustentação... — e vão definindo espaços dramáticos que o leitor terá de percorrer com o mesmo vagar, a mesma disponibilidade, o mesmo tipo de contemplação, a mesma surpresa, com que deambula por um edifício, e que se articulam com uma complexidade que é tão arquitectónica como literária.

Mas o tempo e a memória, elementos cruciais que são para o entendimento da obra de Proust, interferem aqui com a paixão proustiana pela Arquitectura ao abordar repetidamente — em boa verdade numa boa dezena de passagens ao longo daqueles cinco milhares páginas — a intervenção na recuperação do património construído no passado.

Em simples alusões ou de forma explícita, muitas vezes com ironia, outras com irritação evidente, sempre com acrimónia, Proust toma posição claríssima na querela (que o era ainda no tempo em que escrevia) em torno da filosofia do restauro de Eugéne Viollet-le-Duc e dos seus discípulos, acentuando com frequência o carácter grotesco dos resultados da aplicação dessa doutrina. A título de exemplo — e como disse, bastantes outros se poderiam apresentar — cito apenas um remoque (em Do Lado de Swann), quando fala explicitamente "daqueles arquitectos discípulos de Viollet-le-Duc, que, julgando encontrar debaixo de uma tribuna Renascença e de um altar do século XVII os vestígios de um coro românico, tornam a pôr todo o edifício no estado em que era suposto estar no século XII".

Porque, para Marcel Proust, a recuperação do tempo passado, a única possível para que não seja tempo perdido, obtém-se exclusivamente pela recriação transfiguradora que o converte em presente.

Pedro Tamen in JA/213 - Novembro / Dezembro 2003